Por:
Priscilla Duarte
A arte de hoje se desenvolve em função de noções interativas, conviviais e relacionais, porém o sujeito é quase sempre reduzido à condição de consumidor de tempo e de espaço. Por isso, para escapar do previsível, é preciso assumir formas clandestinas, já que o vínculo social se tornou um produto padronizado. Nas relações humanas, hoje, a prática artística aparenta um espaço parcialmente poupado à uniformização dos comportamentos.
Sabemos que o século XX foi palco de oposição às forças autoritárias que pretendiam moldar as relações humanas submetendo os indivíduos. Questionar esta idéia preconcebida de evolução da história era aprender a habitar o mundo estreitando o espaço das relações.
“A coisa em si não teria muita importância se esses donos da verdade, intitulando-se detentores legítimos da palavra, não decretassem o que a sociedade ou o indivíduo ‘devem ser’.” Michel Maffesoli
Com o advento das novas tecnologias, novas possibilidades surgiram no campo da arte e do audiovisual, o uso da TV e do computador expandiram o cinema para além das salas escuras. As imagens começam a migrar da tela do cinema para os museus e galerias, espaços estes que permitiram também a integração sensorial do espectador. A imagem-movimento foi introduzida no mundo da arte através do vídeo, que reforçou o encontro entre cinema e arte.
Os paradigmas da história da arte começaram a ser questionados a partir do surgimento da fotografia no século XIX, passando pelo cinema, o vídeo e agora as novas tecnologias digitais e a internet com a conexão do mundo contemporâneo. Instaura-se, então, a reflexão sobre o impacto das novas mídias.
As tendências que marcaram as relações do cinema com as artes plásticas começam com as vanguardas históricas (futurismo, dadaísmo, surrealismo, expressionismo, abstracionismo), passando pelos movimentos pós-modernos (pop art, body art, land art, minimalismo, neoconcretismo, arte conceitual, fluxus), as instalações audiovisuais e a web.
Ante a necessidade de discutir a história da arte na cultura eletrônica e, posteriormente, na digital, verificou-se a urgência de pensar essa disciplina sob uma nova perspectiva que não a especificidade. O vídeo surge num momento de rompimento da arte com a noção de especificidade de linguagens.
Percebeu-se que o meio videográfico não é uma tecnologia de registro e memória de arquivos, mas uma linguagem com mecanismos expressivos, com estratégias artísticas em seu caráter processual que transitam em diversos ambientes criativos.
Cine-Fluxus
Nos anos 60, o grupo Fluxus gerou manifestações associadas a dispositivos tecnológicos. Como outros movimentos de vanguarda, era contra a arte, que só podia ser legitimada por museus e colecionadores, que atuavam. Um movimento artístico contraditoriamente considerado “anti-arte”. Os fluxfilmes eram, a maior parte, exibidos do Fluxhall, cineclube que funcionava no apartamento de Maciuna em Nova York. O Fluxus foi uma comunidade inter-indisciplinar de artistas, músicos, poetas, artistas plásticos, que se reuniam em torno das experiências de John Cage e Marcel Duchamp. Desta comunidade, além de Paik, Vostell, Duchamp e Cage, faziam parte: Merce Cuningham, com experiências no campo da dança; Robert Rauschemberg na pintura; George Marciunas; Dick Riggins; Joseph Beuys; George Brecht e Grupo Gutai, entre outros.
Na década de 70, o chamado cinema expandido, de Gene Youngblood, vem com a proposta de ampliar o cinema para o cinema ambiental, hibridizado, que cruza com diferentes mídias e busca interação.
Nos anos 80, as produtoras independentes, as televisões locais e as TVs comunitárias tornam-se práticas artísticas através do vídeo.
“Essa explosão se torna, por exemplo, a negação dos lugares tradicionalmente eleitos para a experiência estética: a sala de concerto, o teatro, a galeria, o museu, o livro. Realiza-se, assim, uma série de operações – como a land art, a body art, o teatro de rua, o trabalho teatral como ‘trabalho de bairro’ – que, em comparação com as ambições metafísicas revolucionárias das vanguardas históricas, se revela mais limitada, mas também ao alcance mais concreto da experiência atual.” (Gianni Vattimo)
Encontros, trocas e possibilidades
A transitividades dos circuitos alternativos de exibição nos introduz num diálogo que nega a existência de um “lugar do cinema”, que nega a especificidade em favor de uma discussão sempre inacabada, produzindo relações entre indivíduos, grupos, espectadores e o mundo:
“Hoje, frente aos estatutos sociais supostamente imutáveis (classes, categorias socioprofissionais), afirma-se a exigência da mobilidade. O mesmo se dá por meio da circulação de livros e jornais, real e virtual, pela proliferação das trocas: comércio de bens, comércio de idéias, comércio amoroso. Já mostrei em outras circunstâncias como esta troca generalizada constituía a marca inconfundível das ‘revoluções’ societária.” (Michel Maffesoli)
Cineclube é encontro que provoca colisão, que possibilita formas alternativas de existência. Relações que geram outras relações, propostas que geram propostas e trocas. Abordagem construída ao longo da própria abordagem. Numa sessão de cinema comum, a discussão fica para depois do espetáculo. No cineclube a discussão se dá no processo. Não no meio do filme sendo projetado, mas no processo de formatação das sessões. O cineclube representa um interstício social, o qual o filme é apenas um dos acontecimentos. Sem fins lucrativos, o cineclube foge ao quadro da economia capitalista. Problematizando a esfera das relações numa comunidade de trocas, o cineclubismo realmente desenvolve um projeto político:
“Assim como penso que é ilusório apostar numa transformação gradual da sociedade, da mesma forma creio que as tentativas microscópicas, tipo comunidades, comitês de bairro, organização de uma creche na faculdade etc., desempenham um papel absolutamente fundamental.” (Felix Guattari)
A função crítica e subversiva do cineclubismo se dá na criação de linhas de fuga coletivas, ultrapassando os domínios exclusivos da arte e também do cinema.
“Os sistemas simbólicos, como instrumentos de conhecimento e de comunicação, só podem exercer um poder estruturante porque são estruturados.” (Pierre Bordieu)
O artista atua cada vez mais nas relações em que o trabalho cria um público e inventa modelos de sociabilidades. Atuam num campo de produção que pretende introduzir no espaço a prática do cinema. As sessões de cineclube são um conjunto de tarefas alternativas que tenta reconstruir as relações perante um sistema comercial vigente.
“Seria um erro limitar as artes ao que o mundo ocidental considera como ‘alta cultura’.” (Joost Smiers)
O ser humano se constitui como sujeito nas relações. Marcel Duchamp chamou de “coeficiente da arte” esta forma de negociação inter-humana, esta abertura ao diálogo e à discussão. No jogo de trocas, o lugar e a função do espectador interliga pessoas e grupos.
Acontecimentos e trajetórias possíveis
O cotidiano se apresenta como terreno fecundo, tanto da produção das exibições, quanto na produção dos filmes (os grupos cineclubistas acabam se envolvendo com a realização de filmes, ou vice-versa). As sessões nos cineclubes costumam ser um evento. Para além da exibição, há o debate. Para além do debate, há a festa. Para além da festa, apresentações de artistas. Muita coisa rola: desde filmes que chegam fresquinhos na hora para serem exibidos, sem que nada tivesse sido programado, até recitação de poesias, performances, bandas musicais, DJ e por aí vai. A cada sessão, novas pessoas são agregadas, novas ideias chegam, eis que começa um novo ciclo para a preparação de um novo evento, de um novo filme, de uma nova amizade, de um novo projeto, de mais encontros e não acaba mais.
Na esfera das relações humanas, o intercâmbio social com o espectador acontece dentro da experiência estética proposta: fazer filmes e realizar sessões. A atitude diante do poder dominante das salas de exibição comerciais é um fato que essa geração enfrenta pra se libertar das restrições ideológicas da comunicação de massa e criar socialidades alternativas. É o convívio e a disponibilidade que interessa estes grupos. Os encontros informais, a troca de idéia, o compartilhamento que fazem da militância cineclubista as bases de uma estética híbrida, criativa e transitória:
“É enquanto instrumentos de comunicação e de conhecimento que os sistemas simbólicos cumprem a sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre outra (violência simbólica) dando o reforço da sua própria força às relações de força que as fundamentam e contribuindo assim, segundo a expressão de Weber, para a ‘domesticação dos dominados’.” (Pierre Bordieu)
O caráter autônomo e independente das atuações são pontos em comum na construção do processo de trabalho. A exibição não é uma conclusão lógica, e sim um acontecimento. Indicam trajetórias possíveis na negociação do convívio que levam o espectador a tomar consciência do contexto em que se encontra. Lembrando que este espectador também pode ser cineclubista, cineasta ou nenhum nem outro. No ambiente dos cineclubes não há função específica, todos fazem tudo. Claro que tem pessoas que sabem fazer uma coisa e outras que sabem fazer outras. Mas é a troca, a partilha, a negociação, o convívio, o encontro que movimentam este universo.
O espectador não fica entre o papel de consumidor e testemunha. Convidado a se associar, pode se tornar co-produtor e protagonista na negociação das relações abertas. A arte de hoje leva em conta, no processo de trabalho, a presença da microcomunidade que pode acolhê-la. Assim, uma obra cria uma coletividade de espectadores participantes no seu modo de produção. Toda a comunidade que participa na realização dos filmes e/ ou da sessão, estarão presentes no dia da projeção.
Nicolas Borriaud fala do estreitamento entre o ator e o passante, devido a desenvoltura dos novos equipamentos de filmagem que possibilita o “cidadão comum” fazer filme com o “cidadão comum”.
Através dos filmes, fica evidente que todos podem mostrar o que pensam e sentem com o acesso fácil e relativamente barato dos meios digitais, funciona como um convite à criação e à ação.
A pluralidade é a idéia de interação e intercâmbio. Modos de vida e o estar juntos são a comunicação inter-humana e modos que ultrapassam os guetos e instituições pré-concebidas. Trazem a idéia de que público não é uma “massa” unitária, idéia esta fascista e totalitária. Esse tipo de relação, totalitária, constitui um exemplo moral com critério institucional restritíssimo, que quer definir o que é cinema de “verdade”.
O cineclube permite tomarmos consciência dos modos de produção em nossa época. Os filmes, ao serem exibidos, se tornam visíveis, permitindo que tenhamos acesso às práticas audiovisuais contemporâneas. O cinema popular contemporâneo produzido nas franjas da cidade e por pessoas “comuns”, encontram no cineclube o meio alternativo de acesso à suas obras. Consiste em subverter a autoridade da técnica do cinema, o que torna capaz de criar maneiras de pensar e expressar, ver e viver. O cineclube é subversivo porque enfrenta a autoridade do Direito de Exibição, ligada ao Direito Autoral, que quer controlar o acesso à cultura. Os cineclubes trabalham pelo Direito do Público.
As novas tecnologias digitais foram um grande marco no cinema e na arte de hoje. Possibilitou a expansão dos cineclubes e popularizou a produção audiovisual. A arte atual é afetada pelas maneiras de ver e pensar possibilidades. A câmera de vídeo e o projetor funcionam como pilares que possibilitam estas ações, e também o encontro e o acontecimento, são tão importantes, quanto o computador, a Internet e o microfone.
O cinema é o tema, a grande paixão dos cinéfilos que se propõem a fazer cineclube; mas é o esquema de ação, o encontro fortuito que constitui o objeto.
“...defendo que a alternativa à expansão do fascismo social é a construção de um novo padrão de relações locais, nacionais e transnacionais, baseados simultaneamente no princípio da redistribuição (igualdade) e no princípio do reconhecimento (diferença).” (Boaventura de Sousa Santos)
Estamos submetidos aos aparatos de nivelamento e estas situações, os cineclubes, lutam contra o domínio dos filmes enlatados que a indústria cinematográfica nos oferece ou contra o isolamento coletivo dos games.
A imagem efêmera do comportamento coletivo nasce com a idéia de rede e a projeção funciona como interstício contra a alienação reinante do mercado exibidor. Mercado este de acesso caro e restrito. Restrito à diversidade cinematográfica, aos lugares ermos, ao público sem grana, ao debate, entre tantas outras restrições. É a relação fornecedor/ cliente generalizada que apresenta um enorme déficit democrático.
A eficácia consiste em promover a multiplicidade, e não a individualidade, tão cara a ideologia que glorifica a solidão do artista/ criador e o louvor a “originalidade”. Os “grandes nomes”, ou seja, as celebridades, empobrecem o leque de possibilidades.
Os grupos cineclubistas criam instrumentos para resistir a uniformização dos gostos, dos comportamentos e dos pensamentos. Trabalham num sistema de trocas e de fluxos sociais que ocupam o lugar de áreas que ficaram vagas, devido a falta de espaços para estas trocas e fluxos. Tendem a atravessar os efeitos da homogeneização que o sistema capitalista exerce violentamente sobre o indivíduo. A atitude do fazer cineclubístico quer desterritorializar para operar bifurcações, novas trilhas. Tais são os procedimentos que quer definir o cinema como construção de um território político que enriqueça a relação com o mundo.
Conclusão
Trabalhar nesta redistribuição social da cultura é criar alternativas as formas dominantes de produção. O cinema vive uma crise no funcionamento do tripé: produção, distribuição e exibição. O circuito comercial exibidor não dá conta da produção contemporânea.
O cinema popular contemporâneo não é marginal nem institucionalizado.
Estas produções geralmente não estão enquadradas em leis de incentivo do governo, que são amplamente ligadas a iniciativas privadas que escolhem filmes de seus interesses, como grandes produções com artistas famosos e diretores consagrados. Por isso não existe distribuição oficial destes filmes, eles são distribuídos pelo próprio grupo realizador e exibidos em cineclubes e/ ou mostras e festivais de caráter alternativo e independente como a MFL (Mostra do Filme Livre); Visões Periféricas; Mostra de Filmes Universitários; entre outros.
“Trabalhar com o que foge de si mesmo, com o que é fugaz e esquivo, é árduo e tende a ser uma operação posta de lado em meios intelectuais rígidos como costuma ser universidades.” (Teixeira Coelho)
A produção independente e alternativa é uma resposta ao sistema dominante do cinema. Surgindo novos realizadores, contrapondo a universalização do domínio da informação, o movimento cineclubista cria rupturas e bifurcações no exercício da liberdade. Não se domestica para não cair na rotina reguladora.
O cineclubismo é o sentimento de uma ausência, de uma necessidade de comunidade que pode e deve se expressar pelos meios audiovisuais e contra a homogeneização dos modos de existência. O cineclube descomunica em relação ao poder constituído. É anti-mercado por natureza.
Priscilla Duarte da Silva
Mestranda no Programa de Pós-graduação em Arte, Cognição e Cultura/ UERJ
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